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"O 25 de Abril é o andaime que nos sustenta na construção diária do nosso destino comum, o chão seguro em que podemos confiar"

Discurso do deputado municipal do Bloco de Esquerda, Pedro Jorge, na sessão da Assembleia Municipal da Figueira da Foz na comemoração dos 50 anos do 25 de Abril.

Entre o passado dia 9 de Janeiro e anteontem, 23 de Abril, a Conferência de Líderes desta Assembleia, sob proposta do PSD prontamente acolhida pelos outros grupos políticos, teve oportunidade de promover três encontros em escolas do concelho, com alunos de diferentes idades, para falar e dar a conhecer um pouco desta Assembleia, do poder local e dos 50 anos do 25 de Abril. Enquanto aproveito para saudar e agradecer a todos os intervenientes – a mesa da Assembleia, os restantes líderes de bancada, os deputados Célia Morais e José Ligeiro, a D. Helena Pereira e todas as senhoras professoras e professores e demais pessoal organizador – pela oportunidade que me deram de participar nestes encontros, lembro que conversámos com centenas de alunos da Escola Secundária c/3ºCEB de Cristina Torres, do Jardim-Escola João de Deus das Alhadas e da Escola EB1 do Serrado, em Buarcos. Entre alunos que votaram pela primeira vez no passado dia 10 de Março ou que ainda o vão fazer no próximo dia 9 de Junho, e muitos outros, filhos e filhas de pessoas que não eram sequer nascidas há 50 anos, onde estavam crianças que nem sequer nos perceberam muito bem por terem chegado recentemente a Portugal, e ainda crianças com medidas de inclusão por terem necessidades diferentes das da maioria, tivemos a oportunidade de conhecer e dar a conhecer um pouco do Portugal que emergiu desta data histórica, em contraste com o que existia até 24 de Abril de 1974. Foi um exercício de cidadania magnífico, com o traço comum da curiosidade presente em idades tão diferentes, onde se pôde aprender sobre factos tão diversos como a inexistência de iogurtes e Coca Cola antes do 25 de Abril, até ao método de Hondt e aos círculos eleitorais do país. Está de parabéns esta Assembleia.

Estes exercícios de democracia deixaram-me, contudo, a pensar em algo mais abrangente e sobre o qual gostava de deixar uma breve reflexão, e que tem a ver com aquilo que somos enquanto povo – a memória e a identidade. Num tempo em que, ao contrário do que aconteceu na grande maioria dos anos em democracia, uma parte de nós, de quem se diz que está zangada, decidiu vocalizar de forma mais directa e até desassombrada, ideias opostas às que hoje celebramos, não disfarçando mesmo o incómodo que lhes causam estas celebrações – torna-se cada vez mais importante falar com as novas gerações, deixando-lhes um legado dos valores democráticos surgidos de Abril e que nos sustentam a identidade forjada de séculos. É importante fazer-lhes perceber a ligação que existe entre os acontecimentos de há 50 anos e o país que somos hoje. É preciso ter memória para não cair em mentiras e discursos populistas que nos corroem a identidade comum e minam o que tanto custa a construir, em democracia e liberdade.

É preciso lembrar sempre que, há exactamente 50 anos, uma 5ª feira como hoje, acordávamos para um país a fazer despontar em si mesmo uma nova alma. Um arregaçar de mangas, um deitar as mãos ao trabalho, percebendo-se quase de imediato que todos tinham lugar neste novo Portugal que então emergia. Não se perdeu tempo, pois o edifício democrático estava por construir, após décadas de abandono. E fez-se: incluindo todos, mesmo em tempos conturbados de orientações desavindas, organizaram-se eleições livres, elaborou-se uma nova Constituição e elegeram-se assembleias e governos democráticos correspondentes à vontade da maioria. Acolheu-se, de forma exemplar, 600 mil portugueses que viviam nas ex-colónias e que voltaram durante o processo de descolonização, sem praticamente qualquer tipo de conflito social que pusesse em causa o processo de conquistas democráticas em curso. Restituiu-se a dignidade às mulheres, metade da população, através da vivência plena da sua condição, com a remoção de leis discriminatórias e impensáveis de machismo e paternalismo. Criou-se um sistema nacional de saúde universal que é um garante de vida, e retirou-se das trevas do analfabetismo a grande maioria da população portuguesa. Entre aflições económicas e financeiras, conseguimos, em apenas 12 anos, deixar de ser um estado pária na nossa vizinhança europeia ocidental para entrarmos na então Comunidade Económica Europeia, beneficiando dessa integração plena e tornando-nos um estado democrático integrado na sua verdadeira dimensão. Consolidámos a nossa democracia nas décadas seguintes, reforçando o ensino, a saúde e as diversas áreas da nossa vida, combatendo a nossa pobreza endémica e construindo um país onde, qualquer que seja o quadrante político de onde vimos, todos sabemos que a larguíssima maioria dos portugueses vive muito melhor do que há 50 anos. Que povo extraordinário este!

E no entanto…

O que é que explica que, sabendo em momentos decisivos da sua história distinguir entre o essencial e o acessório, conseguindo fazer coisas tão bem e sendo por vezes apontado como exemplo a nível europeu e mundial, Portugal pareça às vezes deitar tudo a perder por se pôr em causa a si próprio? Camões já o sabia: na sua obra maior, canta-nos como “forte gente”, que realizou feitos “mais do que prometia a força humana”, mas também nos aponta como “gente surda e endurecida”, “de uma pátria/ Que está metida/ No gosto da cobiça e na rudeza/ De uma austera, apagada e vil tristeza.”. O que explica esta ambivalência? Talvez o facto de, sendo um só povo, termos nas profundezas da nossa história uma génese múltipla, feita de muitos povos antigos, vindos de diversas partes? Ou será porque gostamos de nos desafiarmos a nós próprios, incessantemente em busca de “um sentir português”? O que quer que seja, torna-nos um caso único de uma gente ao mesmo tempo universal e paroquial, grandiosa e comezinha, optimista em excesso e pessimista em igual medida, sem precisarmos que no-lo digam, pois nós sabemo-lo, até ao fundo do nosso âmago.

Será talvez este traço que, nos momentos de maior dificuldade, nos faz por vezes andarmos perdidos em nós próprios, pondo tudo em causa e deixando que se instale no país um clima de revolta e desespero, sem sabermos muito bem porquê, deixando vir ao de cima as piores facetas que temos. Há mais portugueses zangados, sem dúvida. Com mais ou menos razões para isso, uma parte dessa população deixou-se levar por discursos simplistas e mesmo falsos. Só isso pode explicar, por exemplo, a falta de memória de alguns quando abordam o tema dos imigrantes que nos escolhem para viverem uma vida melhor, em paz e liberdade, tantas vezes fugindo da miséria, de perseguições e da guerra. Como é que nos podemos esquecer que somos ainda um país de portugueses que escolhem sair, com a agravante de, nestes tempos, serem maioritariamente quadros qualificados que o fazem, ao contrário do que acontecia nas grandes vagas de emigração dos anos 60, de fuga à guerra colonial ou apenas à pobreza e à miséria? Não me posso esquecer de um familiar que teve de dormir numa banheira durante os primeiros tempos após a sua chegada a uma “bidonville” dos subúrbios de Paris até conseguir arranjar condições mais dignas, que lhe permitiram posteriormente alojar a sua mulher, que foi empregada de limpeza num aeroporto de Paris. Até regressarem nos finais dos anos 90, depois de anos e anos a enviarem as suas remessas que ajudaram o país nos difíceis anos de finais de 70 e inícios de 80, puderam construir a sua vida, educar as suas filhas e regressarem, gratos por uma reforma que mereceram inteiramente. Não nos podemos esquecer. Quem nos procura participa no esforço do país, sustenta várias actividades económicas, contribui para a sustentabilidade da Segurança Social, exigindo bastante menos em troca, como mostram os números oficiais. Só pedem dignidade e uma vida decente. Não, não nos podemos esquecer. Sempre celebrámos a nossa hospitalidade e, sobretudo, não somos ingratos.

É por estas e outras razões que hoje celebramos esta data num momento em que, mais do que nunca, é preciso lembrar o espírito de Abril na sua essência – a liberdade de sermos nós próprios, com as nossas contradições e divisões, com a sensação muitas vezes lembrada nestas cerimónias, de que Abril está por cumprir. Está, obviamente, pois foi feito por nós. Mas está em nós, também. De cada vez que lembramos versos e poemas de Sophia de Mello Breyner, José Carlos Ary dos Santos e canções como “E Depois do Adeus e o “Grândola, Vila Morena”, estamos a realizar Abril, na nossa vivência única de uma comunidade que constrói o seu futuro dentro do espírito deste dia 25.

É nesse sentido de pertença que este dia nos dá que, cada vez que leio Camões, Pessoa, Eça ou Torga, quando contemplo um quadro de Paula Rego, quando oiço os primeiros acordes dos “Verdes Anos” de Carlos Paredes ou a inesquecível voz de Amália a cantar o “Povo que lavas no rio”, sei que pertenço – pertenço a um povo tantas vezes perdido nas suas contradições e lamúrias, um povo que não é melhor nem pior que tantos outros povos do mundo, e que se esquece de se lembrar de que tem o seu lugar único nesse mundo, que tantas vezes o aprecia pelas suas imensas qualidades.

Caros concidadãos,

Os acontecimentos de há 50 anos foram o momento fundador da nossa identidade renovada, aquela que soubemos construir a partir da nossa história e cultura de quase 9 séculos, corrigindo o rumo de maneira decisiva, um rumo mais consentâneo com o nosso lugar no mundo dos séculos XX e XXI. O 25 de Abril não é o edifício que construímos ou qualquer fortaleza de virtudes para apenas evocar todos os anos. O 25 de Abril é o andaime que nos sustenta na construção diária do nosso destino comum, o chão seguro em que podemos confiar para alcançarmos as tarefas mais difíceis nesse processo de construção da nossa identidade – respeitando os valores democráticos, não deixando ninguém de lado, e sempre, sempre, em liberdade.

Hoje e sempre,

VIVA O 25 DE ABRIL!

VIVA PORTUGAL!