Intervenção na sessão da Assembleia Municipal da Figueira da Foz de Comemoração do 49.º aniversário do 25 de Abril, pelo representante do Bloco de Esquerda, Pedro Jorge:
Senhor Presidente da Assembleia Municipal
Senhor Presidente da Câmara Municipal
Cumprimento em Vossas Excelências todos os presentes, com uma saudação especial às Freguesas e aos Fregueses de Moinhos da Gândara que hoje acolhem esta Festa da Liberdade, e ainda à comunicação social presente que nos leva a todo o concelho da Figueira da Foz
Serras, veredas, atalhos,
Fragas e estradas de vento,
Onde se encontram retalhos
De vidas em sofrimento
Os mais velhos de entre nós lembrar-se-ão destes versos, cantados de forma profunda e envolvente no genérico de uma série produzida pela RTP nos finais da década de 70, em que Carlos do Carmo emprestava a sua magnífica voz ao poema de José Carlos Ary dos Santos intitulado Retalhos da Vida de um Médico, baseado na obra homónima de Fernando Namora. É um poema notável, que capta na perfeição o espírito da obra, marcadamente auto-biográfica, que nos conta dos anseios, angústias e dificuldades de Fernando Namora durante os seus primeiros anos como médico em localidades da Beira Baixa e do Alentejo nos inícios da década de 40 do século passado. E são de facto “vidas em sofrimento” que ele encontra nesse Portugal profundo e esquecido, sob o jugo do Estado Novo que o oprime, acentuando a miséria herdada de décadas.
O mundo entrava então na 2ª Guerra Mundial e no seu horror absoluto. O Estado Novo, por sua vez, decidia pela mesma altura inaugurar “A Exposição do Mundo Português” com o desígnio de celebrar a fundação da sua nacionalidade, mas efectivamente celebrando o presente do seu proclamado império, caucionado pela mitificação de um passado imposto como glorioso. O povo português, esse, definhava, ou era obrigado já a emigrar, cerca de 20 anos antes de toda uma geração de jovens, portugueses europeus e também africanos, ter sido obrigada a iniciar uma guerra estúpida e criminosa, de onde regressou mutilada, física e psicologicamente, quando regressou de todo.
Era de facto uma vida retalhada e de retalhos, como nos lembra Ary dos Santos. Retalhada no seu âmago, condenada a viver sujeita à pobreza, à inconstância e ao medo. Os números eram avassaladores: índices de analfabetismo elevadíssimos, dos piores da Europa, que mostravam uma condenação de grande parte da população a uma vida destinada à ignorância e à submissão; os números da saúde mostravam uma realidade semelhante, com uma percentagem de mortes à nascença que nos envergonhava em toda a Europa; o mesmo se passava noutras áreas da vida das populações, sempre com as mesmas características de marcada opressão e controlo que as subjugava, populações essas que estoicamente foram tentando viver sob um regime que as condenou a uma existência de retalhos de miséria.
Celebramos hoje os 49 anos do dia que veio pôr termo a esta “longa noite do fascismo”. Foi uma vitória da unidade sobre a divisão, do todo democrático sobre a dissensão imposta por um regime exclusivo e opressor, o dia “inteiro” como nos lembrou Sophia. Todas as esperanças eram possíveis. E Portugal soube reconstruir-se. Incluiu, não excluiu. Uniu e juntou, não separou. Pegou no bom que resiste sempre a qualquer tirano, a alma de um povo, e criou. Criou as condições para que, fundamentalmente, todos sem excepção, pudessem realizar-se enquanto seres humanos, criando um sistema nacional de saúde e uma educação universais que nos tiraram do mais profundo obscurantismo, devidamente enquadrados numa Constituição que respeitava a Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos permitiu caminhar em direcção a uma efectiva integração europeia, europeus que sempre fomos, num regresso a uma dimensão mais consentânea com a nossa realidade.
Caros concidadãos,
Sabemos bem nestes dias que passam que este legado da democracia não é eterno e necessita de ser mantido e defendido para sobreviver, em cada momento das nossa vidas quotidianas, nas nossas relações, no trabalho, na escola, sempre, sem descanso. Temos novamente “vidas em sofrimento”. Atravessamos uma guerra na Europa que tem repercussões em todo o mundo, hoje globalizado. Enfrentamos perigos que, sendo cosmeticamente diferentes, são no fundo os mesmos de há 50 anos, e destapam agora a sua cabeça de forma cada vez menos envergonhada. São forças novamente de direita e extrema-direita, armadas com ideias velhas, travestidas de uma pseudo-modernidade que as faz parecer como a solução de todos os problemas das sociedades multifacetadas de hoje, mas que só trazem exclusão, divisão e até ódio. Ao mesmo tempo, sobretudo a extrema-direita iliberal, junta-lhe uma característica nova, consequência de um desenvolvimento tecnológico ainda muito desregulado, que é a mentira e a pura invenção de factos mascarada de verdade irrefutável. Por fim, alguns encharcam a opinião pública com uma confusão conceptual que lhes é muito cara, entre liberdade e liberalismo (aliás, uma certa visão deste, em que os estados devem “sair da frente” dos seus negócios, excepto quando estes correm mal). São forças partidárias mais organizadas, presentes em muitos parlamentos por essa Europa fora, incluindo o nosso. Na nossa realidade, oferecem soluções aparentemente fáceis para problemas complexos, actuando dentro no nosso sistema democrático consolidado por Abril numa lógica de “cavalo de Tróia”, querendo corroê-lo por dentro até o moldar aos seus intuitos, destruindo-o efectivamente naquilo que ele tem de alicerce da nossa vivência civilizacional. Aliás, são partidos que cada vez menos disfarçam que estas comemorações do dia 25 de Abril lhes causam engulhos difíceis de digerir. Por eles, passaria a haver um ensino público de serviços mínimos, com cheques educação para colégios privados que acolheriam os mais favorecidos, enquanto o Sistema Nacional de Saúde deveria continuar a ser paulatinamente desmontado a favor dos serviços de saúde privados, em negócios de milhões, com o “exército” diário de cabeças falantes a jurarem a pés juntos que o Estado não sabe gerir. Eles pretendem trazer novamente a sobrevivência mínima, a “caridadezinha” e a sociedade dividida entre os que têm emprego e o merecem, e os que não o têm porque não merecem. Obviamente, não passarão!
Senhoras e senhores,
As vidas retalhadas de um “povo triste” são aquilo que Abril nos lembra que teremos sempre de combater. Deixemos a tristeza e a melancolia na nossa expressão musical nacional do fado e realizemo-nos de uma vez por todas enquanto o país que Abril abriu – 49 anos depois, um país integrado e integrante, que conhece os seus problemas, mas que sabe melhor que estes poderão ter sempre solução dentro do seu regime democrático e plural, numa sociedade com gerações mais capazes do que nunca, a todos os níveis, na medida em que se reconhece como multicultural e aberta à diferença. Vivemos tempos difíceis, sim, mas sabemos melhor do que nunca que rejeitamos a miséria de tempos passados e os fatos que ela hoje veste.
Viva o 25 de Abril!